O VÔO SOBRE AS IGREJAS
Carlos Drummond de Andrade
Vamos até a Matriz de Antônio Diasonde repousa, pó sem esperança, pó sem lembrança, o Aleijadinho.Vamos subindo em procissão a lenta ladeira.Padres e anjos, santos e bispos nos acompanhame tornam mais rica, tornam mais grave a romaria de assombração.
Mas já não há fantasmas no dia claro,tudo é tão simples,tudo tão nu,as cores e cheiros do presente são tão fortes e tão urgentesque nem se percebem catingas e rouges, boduns e ouros do século 18.
Vamos subindo, vamos deixando a terra lá embaixo.Nesta subida só serafins, só querubins fogem conosco,de róseas faces, de nádegas róseas e rechonchudas,empunham coroas, entoam cantos, riscam ornatos no azul autêntico.
Este mulato de gêniolavou na pedra-sabãotodos os nossos pecados,as nossas luxúrias todas,e esse tropel de desejos,essa ânsia de ir para o céue de pecar mais na terra;este mulato de gêniosubiu nas asas da fama,teve dinheiro, mulher,escravo, comida farta,teve também escorbutoe morreu sem consolação.
Vamos subindo nessa viagem, vamos deixandona torre mais alta o sino que tange, o som que se perde,devotas de luto que batem joelhos, o sacristão que limpa os altares,os mortos que pensam, sós, em silêncio, nas catacumbas e sacristias,São Jorge com seu ginete,o deus coberto de chagas, a virgem cortada de espadas,e os passos da paixão, que jazem inertes na solidão.Era uma vez um Aleijadinho,não tinha dedo, não tinha mão,raiva e cinzel, lá isso tinha,era uma vez um Aleijadinho,era uma vez muitas igrejascom muitos paraísos e muitos infernos,era uma vez São João, Ouro Preto,Mariana, Sabará, Congonhas,era uma vez muitas cidadese o Aleijadinho era uma vez.
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